quinta-feira, 7 de abril de 2011

A Escrita da História, Michel de Certeau


Certeau, Michel de, 1925-1986. A Escrita da história/Michel de Certeau; tradução de Maria de Lourdes Menezes: revisão técnica de Arno Vogel. -ed 2. Ed.- Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

A história religiosa é o campo de um confronto entre a historiografia e a arqueologia da qual parcialmente tomou lugar. Secundariamente, permite analisar a relação que entrelaça a história com a ideologia da qual deve dar conta em termos de produção. As duas questões se entrecruzam e podem ser consideradas em conjunto no setor estreitamente circunscrito do “tratamento” da teologia por métodos próprios à história. (pág. 31)

Sem dúvida a história é o nosso mito. Ela combina o pensável e a origem, de acordo com o modo através do qual uma sociedade se compreende” (pág. 33.)

Globalmente, desde há três séculos, no que concerne à França, a história religiosa parece marcada por duas tendências: uma originária das correntes espirituais, fixa o estudo na análise das doutrinas, a outra, marcada pelas “Luzes”, coloca a religião sob o signo das superstições. (pág.34)

 A História da Loucura criou o signo desse momento em que uma cientificidade ampliada se confronta comas zonas que abandona como seu resíduo ou reverso inteligível. A ciência histórica vê crescer, com seu progresso, as regiões silenciosas do que não atinge. (pág.50)

“... existe em cada história um processo de significação que visa sempre preencher o sentido da história: o historiador é aquele que reúne menos os fatos do que os significantes. Ele parece contar os fatos, enquanto efetivamente, enuncia sentidos que, aliás, remetem o notado a uma concepção do notável”. (pág. 52.)


 A história cairia em ruínas sem chave de abóbada de toda a sua arquitetura: a articulação entre o ato que propõe e a sociedade que reflete; o corte, constantemente questionado, entre um presente e um passado; (pág.54)

A escrita histórica se constrói em função de uma instituição cuja organização parece inverter: com efeito, obedece a regras próprias que exigem ser examinadas por elas mesma. (pág.66)

Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural. (pág.66)

 A história não reconstitui a verdade do ocorrido no passado. Vivemos no tempo da desconfiança em que “Mostrou-se que toda interpretação histórica depende de um sistema de referência; que este sistema permanece uma filosofia implícita particular; que se infiltrando no trabalho de análise, organizando-o à sua revelia, remete à subjetividade do autor”. (pág. 67)

 “Fazer história” é uma prática. Sob este ângulo podemos passar para uma perspectiva mais pragmática, considerando os caminhos que se abrem sem se prender mais à situação epistemológica que, até aqui, foi desvendada pela sociologia da historiografia. (pág.78)

O historiador trabalha em cima de um material para transformá-lo em história. Empreende uma manipulação que obedece a regras. “Quando o historiador supõe que um passado já dado se desvenda no seu texto, ele se alinha com o comportamento do consumidor. Recebe, passivamente, os objetos distribuídos pelos produtores”. (pág. 80)

“A escrita não fala do passado senão para enterrá-lo. Ela é um túmulo no duplo sentido de que, através do mesmo texto, ela honra e elimina”. (pág. 108)

A linguagem permite a uma prática situar-se com relação ao seu outro, o passado. Com efeito, ele mesmo é uma prática. A historiografia se serve da morte para articular uma lei (do presente). Ela não descreve as práticas silenciosas que a constroem, mas efetua uma nova distribuição de práticas já semantizadas. (pág.108)

A história fornece “fotos” destinados a preencher os quadros formais determinados por uma teoria econômica, sociológica, demográfica ou psicanalítica. Esta concepção tende a situar a história ao lado dos “exemplos” que devem “ilustrar uma “doutrina” definida noutro lugar”. (pág.125)


(...). Jean-Jacques Rousseau designa a mutação que se completou, quando escreve a Voltaire: “O dogma não é nada, a moral é tudo”. Da mesma forma, para a Enciclopédia, “a moral prevalece sobre a fé... por que quase toda a moral (...) é de natureza imutável e permanecerá por toda a eternidade, enquanto a fé não mais subsistirá e será transformada em convicção. (pag. 154)

(...). Ao mesmo tempo, a doutrina de ontem se transforma num fato de “crença”, é uma “convicção” (quer dizer, uma opinião combinada com uma paixão), ou uma “superstição”, em suma, o objeto de uma analise articulada por critérios autônomos. (...). Uma “ciência dos costumes”, de agora em diante, julga a ideologia religiosa e seus efeitos, lá onde a “ciência da fé” classificou os comportamentos em uma subseção intitulada “teologia moral”... (pag. 154)

Uma apologética prolifera numa atmosfera onde as violências e as “controvérsias” entre grupos religiosos crescem com a suspeita que atinge seus imperativos particulares. Mesmo a filosofia cristã é mobilizada pela tarefa que Malebranche definiu como: “Descobria através da razão, entre todas as religiões aquela que Deus estabeleceu.” (pag. 156)

Para reencontrar a certeza através de unidade é preciso, pois: ou remontar a uma religião natural, mais fundamental que as religiões históricas, todas contingentes: ou tentar levar, para uma destas religiões todas as suas rivais, que se hão de considerar “falsas”, graças ao estabelecimento de “marcas” garantido a “verdadeira”. (pag. 157)

(...). No século XVIII será considerada com um olho já etnográfico pelos “observateus de I’homme”. O próprio termo que a designa muda de sentido. Religião não significa mais uma Ordem religiosa ou a Igreja no singular: “religião de agora em diante, se pode dizer no plural”. (...) existe aí um conjunto que é preciso compreender, critica ou situar segundo critérios que não são os seus (...). O conteúdo da crença se oferece a analise, a partir de um distanciamento com relação ao ato de crer. A religião tende a se tornar um objeto social e, portanto, um objeto de estudo, deixando de ser para o individuo aquele que lhes permite pensar ou se conduzir. (pag. 157)

(...). A razão de Estado já reordena o país como empresa capitalista e mercantilista. Ela também enquadra as crenças: “Governar é fazer crer”. Nesta racionalização política das convicções e das mentalidades, Mersenne via como legitima uma “manutenção dos espíritos”, Campanella, uma “guerra espiritual”, uma cruzada, o equivalente do “combate espiritual”. (pag. 160)

A vontade de “dizer” uma fé se acompanha se um recuo para o “interior” ou para “fora do mundo”. (pag.165)

(...) Montesquieu dirá dos cristãos que eles “não são mais firmes na sua incredulidade do que na sua fé; vivem num fluxo e refluxo que os leva sem cessar de uma à outra”. Humorística talvez, lúcida em todo caso, sua observação indica a dificuldade destes cristãos de encontrar balizadas sociais para sua fé... (pag. 166)

(...) a “heresia tradicional”, forma social modelada numa verteologica, se torna cada vez menos possível. (pag. 172)

(...) a razão tem seu próprio tesouro guardado no povo e inscrito na historia. Ela o transforma, mas recebendo-o daquilo que a precedeu. Um fluxo popular, de onde tudo provem, ascende; finalmente, dizendo-se sua cabeça de ponte, a ciência esclarecida confessa, também, não ser senão a metáfora dele. (pag. 175)

O dicionário se torna instrumento teológico. Quando a linguagem religiosa é pervertida por um uso é “difícil de conhecer” e que remete ao insondável das “intenções” ou do “coração”. (pag.224)

(...), Joana dos Anjos é a vez de tal ou qual demônio que a possui. São discursos escritos na diferença dos tempos, quando ela se objetiva dizendo: “Eu era, eu fazia”. (...) Joana dos Anjos pode falar como possuída, mas não pode escrever como possuída. A possessão não é senão uma voz. Desde que Joana passa à escrita ela diz o que fazia, pensa no passado, descreve um objeto distante dela sobre o qual, a posterior, pode, aliás enunciar o discurso do saber.(pag. 252)

(...). O mundo se transforma em espaço; o conhecimento se organizar como olhar, em Pascal, com toda a dialética da distancia ou do “ponto de vista” do observador, e em Descartes, com a filosofia cogito operando um trabalho de distinção na e com relação à “fabula do Mundo”.(pag.264)

“A etnologia, diz ele, se interessa, sobretudo, pelo que não está escrito”. (pág. 212)

 A propósito de uma tradição oral dos Tupis concernente ao dilúvio que teria afogado “todos os homens do mundo, exceto suas avós, que se salvaram sobre as mais altas árvores de seu país”, Léry observa que “estando privados de toda espécie de escrita lhes é penoso reter as coisas em sua pureza; eles acrescentaram a está fábula, como os poetas, que seus avôs se salvaram sobre as árvores”. (pág. 218)

Os “ruídos” que chegam da festa dos homens-selvagens, assim como os “sons inarticulados” que assinalam a dos “homens-mulheres”, não têm conteúdo inelegível.  (pág. 229)

A nudez destas mulheres da noite, loucas de prazer, é uma visão muito ambivalente. Sua selvageria fascina e ameaça. Ela vem do mundo desconhecido onde estão as índias tupi, segundo Léry, as únicas a trabalhar incansavelmente, ativas e vorazes, também, as primeiras a praticar a antropofagia. (pág. 231 e 232)

Este primeiro estudo, La Possession de Loundun, tratava de compreender o espetáculo diabólico como um fenômeno social, examinando nele as regras as quais o jogo de personagens obedecia no campo religioso, médico ou político, e por outro lado, as relações que os processos de aculturação social mantinham com uma lógica do imaginário. (pág. 245)

Uma perturbação já faz parte do documento tal como ele nos chega, e não se pode identificar com o texto perguntas-respostas à possessão que nele se revela. (pág. 252)

Joana dos Anjos pode falar como possuída, mas não pode escrever como possuída. (pág. 252)

Os textos das possuídas não fornecem a chave de sua linguagem, que permanece indecifrável para elas mesmas. (pág. 255)

Se, portanto, “o nome próprio permanece sempre do lado da significação”, ele se situa no “limiar” marcado por uma descontinuidade entre o ato de significado e o de mostrar. (pág.259 e 260)

Entrar neste repertorio e descobrir um lugar, mas um lugar que oscila do rito ao teatro é que comprometido pelas interferências do dicionário dos demônios com o das famílias ou o dos nomes religiosos (Joana dos Anjos, Luiza de Jesus). (pág. 262)

A hagiografia é um gênero literário, que no século VII, chamavam-se também de hagiologia ou hagiológica. (pág. 266)

A vida de santo se inscreve na vida de um grupo, igreja ou comunidade. (pág. 269)

A mais antiga menção de uma hagiografia na literatura cristã eclesiástica é uma condenação: o autor (um padre) foi degradado por haver cometido um apócrifo. (pág. 271)

A hagiografia oferece um imenso repertorio de temas que, freqüentemente historiadores, etnólogos e folcloristas exploram. (pág. 275)

A palavra historia oscila entre dois pólos: a história que é contada (Histoire) e a que é feita (Geschichte) (pág. 281)  

A psicanálise não constitui uma nova seqüência no progresso de um engodo sempre acrescido pela capacidade de desmistificar e pela própria lucidez. (pág. 292)

Para Haitzmann, seu trabalho ascético de religioso o dispensa ainda do trabalho que consistiria em “assegurar“ ele mesmo” sua existência”; pede praticar uma lei comum à qual se abandona e se consagra para não ser abandonado. (pág. 293)

Freud traça uma linha de demarcação entre estas duas vertentes da pratica psicanalítica, quando menciona o principio imperceptível que usa como uma navalha, para recortar significantes na superfície de um discurso ou de um texto. (pág. 297)

a erudição pode, comodamente, dar conta de “Moisés e o monoteísmo” citando-o no lugar dos textos sérios. (pág. 301)

 “Moisés o egípcio” este é o “ponto de partida” de um trabalho analítico. (pág. 302)

a fábula freudiana se anuncia “analítica” porque restaura ou confessa o corte que em todo lugar volta e se desloca “romanesca” porque não aprende nunca senão substitutos de outra coisa e de estabilidades ilusórias com relação à divisão que as faz roçar no mesmo lugar. (pág. 307)

O texto nasce da relação entre uma partida e uma divida. (pág. 310)

É necessário morrer de corpo para que nasça a escrita. (pág. 314)

O que se inscreve nos textos - e no romance de Freud – é o seu luto, já que o trabalho de “fechar os olhos” do “pai” anuncia igualmente a lei de seu retorno. (pág. 320)

A lenda judia do nascimento de Moisés “difere de todas as outras lendas do mesmo gênero”; “ocupa a parte e contradiz mesmo a outras num ponto essencial”: (...). (pág. 325)

A inversão, na verdade, não é senão uma variante. (pág.325)

É verdade, a historiografia “conhece” a questão do outro. (pág. 333)

Para Freud, o problema religioso é indissociável da sua tradição. (pág. 334)

A comunicação é sempre a metáfora do que oculta. (pág. 336)

O romance de Freud é a teoria da ficção cientifica. (pág. 337)




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